“As baleias não cantam porque têm uma resposta. Elas cantam porque têm uma canção”.

Néliane Catarina Simioni
5 min readJun 19, 2023

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Cena do filme “Ashes and Snow”, de Gregory Colbert (2005)

Certa vez, visitava o apartamento de um crush que mora em outro estado. Ele me fazia uma massagem, embora estivesse completamente torta no sofá de sua sala de estar. Ainda assim, disse algo como “nossa, massagem é tão bom que tá incrível, mesmo toda torcida aqui”. O bonito simplesmente respondeu “é porque você aceita pouco”. Assim, do nada.

A história se tornou causo para contar, o que adoro fazer. Estes dias, nos reencontramos e relembramos o episódio. Comentei que havia espalhado a cena por aí, com meus toques de humor, e ele emendou: “ah, muito bonito. tá lidando no bar ao invés de lidar na terapia”. Rimos escandalosamente.

Ontem fiz aniversário. No sábado, me dei de presente uma massagem com a Lu, profissional hiper competente (aliás, para quem é de Cordeiro, recomendo demais). Quando saí da sessão, era final de tarde e o sol começava a cair. Este é um dos meus momentos favoritos do dia, o céu se torna um espetáculo. Fiquei admirando a cena, contemplativa e emocionada.

Pensava na chegada dos 35 e em como tudo não é como imaginei. Me vi ali, olhando para o que não realizei, e escutei uma voz: “A única coisa que está do jeito que você queria são suas unhas”. Me reprimi. Depois, me dei o direito de ser fútil e ridícula.

Minha unha está mais forte desde que comecei a tomar suplemento alimentar. Há alguns meses meu exame de sangue mostrou a defasagem nutricional do meu corpo — uma consequência de fatores diversos e, também, da cirurgia bariátrica que fiz em 19 de junho de 2007, um dia após fazer dezenove anos.

Um olhar me levou à decisão de fazer a redução de estômago. Lembro perfeitamente do momento. Era maio, o inverno estava se aproximando e essa é a época que começa a quermesse da praça da igreja Santo Antônio, na cidade onde nasci. Era domingo à noite, estava acompanhada de minha irmã e uma amiga na festa, fazia frio e vestia um moletom roxo. Uma pessoa que não sei quem é me olhou, olhou para o meu corpo, de cima a baixo. Senti um desconforto que pensei me sufocar. Cheguei em casa e pedi para fazer a cirurgia (essa já era uma conversa que tínhamos) . Em três semanas passei por todos os exames e dei entrada no hospital.

Penso que esse acontecimento é algo que sempre estará na balança em minha vida. De alguma forma, nunca deixarei de ser essa garota que, aos 19, recorreu a uma medida drástica porque se sentiu inadequada.

Semana passada li um texto belíssimo de uma artista que optou pela mesma cirurgia recentemente. Ela escreve sobre o intenso sentimento de fracasso que a acompanha neste processo. Me tocou profundamente.

Compartilho deste sentimento de fracasso, hoje de outras maneiras. Sinto que fracassei primeiro por ter feito a escolha tão jovem. Segundo, pois, confesso, em certas ocasiões me envergonho por ter recuperado boa parte dos quilos que havia emagrecido.

Neste tempo que passou, porém, me entender como uma mulher gorda foi fundamental. Me levou a fazer novas perguntas e estudar, a escrever, a explorar a presença do meu corpo no mundo sendo grande… o que fortaleceu algo em mim que não sei explicar.

No começo desta busca por pertencimento como mulher gorda eu diria com firmeza que jamais faria a cirurgia nos dias de hoje. Agora, penso que essa ideia é de certa forma enganosa, uma vez que esta pergunta — se fosse hoje, eu faria a cirurgia? — é a questão que jamais terá resposta certa ou errada. Fato é que fiz a cirurgia aos 19 anos, e tudo o que experimentei depois é atravessado por isso.

Ao ler o texto já citado aqui, me dei conta que não vivi os lutos necessários e pertinentes ao tamanho da decisão de fazer a redução de estômago. Não poderia. Na época, não tinha maturidade para compreendê-los. Somente agora também percebo que nunca quis deixar de ser aquela garota… uma jovem com fome de vida, que só queria ser aceita.

Ano passado, uma grande amiga me convidou para celebrar o seu casamento. Na cerimônia, que para mim é a mais linda de todas, disse no discurso ao casal que acredito que o amor não é sem a beleza. E sobre a beleza, citei um trecho de Valter Hugo Mãe: “Só existe a beleza que se diz. Só existe a beleza se existir interlocutor. A beleza da lagoa é sempre alguém. Porque a beleza da lagoa só acontece porque a posso partilhar. Se não houver ninguém, nem a necessidade de encontrar a beleza existe, nem a lagoa será bela. A beleza é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza pela expectativa da reunião com o outro. (…) Todas as lagoas do mundo dependem de sermos ao menos dois. Para que um veja e o outro ouça. Sem um diálogo não há beleza e não há lagoa. A esperança na humanidade, talvez por ingênua convicção, está na crença de que o indivíduo a quem se pede que ouça o faça por confiança. É o que todos almejamos. Que acreditem em nós. Dizermos algo que se toma como verdadeiro porque o dizemos simplesmente.”

Entre as situações e realizações que podem me faltar, há muito mais das que transbordam! Eu sou alguém constituída por excessos e privilégios gigantes. Recebo, desde que me entendo por gente, o amor incondicional dos meus pais. Por que pude senti-lo, fiz esta aposta, desde muito cedo, nas relações.

Se no momento que escolhi fazer a cirurgia bariátrica pensava que só poderia ser amada se fosse magra, estava cega para a beleza e ainda não tinha aprendido a reconhecer a grandeza do amor.

Ontem, ao receber felicitações de tantas pessoas incríveis, mensagens que dão notícias sobre quem sou e me tiram do drama, olhei para a adolescente que me habita e sorri. “Gata, isso é melhor do que esperava!”.

Voltei ao olhar que recebi naquela noite em 2007. Percebi que ele era um tanto meu — e algo muito delicado da gordofobia vivida são as internalizações de inferiorização que ela provoca.

Por fim, se me atrevo hoje a escrever este texto, se me atrevo a falar de amor, é porque este corpo que vos escreve foi visto — e amado. Mais que isso, amou. Se aceito “pouco”, não se engane, estou me divertindo muito.

Chego à nova idade fazendo as contas para saber quantos anos tinha Bethânia quando começou sua carreira na música. Fazemos aniversário no mesmo dia e, poxa, queria estar aos pés dela (risos). Foi aos dezenove!

Me sinto sem tempo, mas não tenho a pretensão de cantar. Sonho ser escritora, algo que não levo a sério por não me achar digna de tal desejo. Algo que já faço, uma vez que escrevo textos quase que diariamente em minha profissão. Algo que todos nós estamos fazendo: tentando dar sentido às nossas existências — no meu caso, por meio da palavra.

Aos 19 anos também comecei o percurso que me modificou. Um corte mais profundo do que mostra a cicatriz em minha pele. O lugar a partir do qual me autorizo a falar. E se o faço, não é mais pelas respostas. Esta é minha canção.

  • Tive notícias do filme “Ashes and Snow” no perfil de Instagram Luzeira • Astrologia. O texto que contém a citação que usei como título deste ensaio é assinado pela astróloga Mariana de Oliveira Campos.
  • O trecho de Valter Hugo Mãe citado por mim é do livro “Desumanização”.

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Néliane Catarina Simioni
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Written by Néliane Catarina Simioni

Confia no aviso que recebeu em sonho: mãos que produzem também curam. Por isso, escreve.

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