Isso não é sobre corpo

Néliane Catarina Simioni
12 min readApr 20, 2021

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“Nunca devemos parar de explorar, e o fim de todas as explorações será chegar onde começamos e conhecer o lugar pela primeira vez.”

T. S. Elliot

O período que antecedeu meu aniversário de 30 anos foi um momento difícil, com dando aquela chamada do é agora ou nunca (porém fiquei mais tranquila depois que uma amiga contou que os 30 são os novos 22). Entre os assuntos que emergiram, as pendengas amorosas estavam lá. E como tenho um apetite maior pelas demandas do coração — e da carne -, facilmente concentro minha atenção nesse lugar.

Em maio, conheci um cara bacana. Match de Tinder. A expectativa do date era básica, um papo de bar com alguém que torci para ser legal. Mas fui surpreendida… não exatamente pelo boy.

Me tornei balzaquiana.

Alguns dias antes do aniversário, recebi uma mensagem de um crush que conheço há pelo menos três anos. Havíamos estado juntos pela última vez em setembro de 2017, quando ele não topou a relação que eu quis ter ao seu lado. Depois, nunca deixamos de nos falar, mas a promessa de vê-lo era nenhuma. O ‘oi, sumida’ foi mais ou menos assim:

- Estou pelas suas bandas, com 3% de bateria. Quer me ver?

Era domingo e eu fazia qualquer coisa ao ouvir o barulho da notificação em tempo real. Celular em mãos, frio na barriga. Sim, não, sim, não, sim, não, sim, simm, simmm.

- Cola aqui.

Eu sabia que a resposta me levava a um possível ‘erro’. Mas eu também pautei minhas três últimas primaveras a partir da história que tive com esse cara. Fui sincera comigo, cedi ao desejo e mais uma vez o recebi.

Durante o encontro, ele comentou que iria ficar pelo centro aquela noite (região onde eu morava) de qualquer jeito, pois estava cansado para voltar à zona sul (região onde ele mora). O motivo: ele saiu de casa no sábado, para um date com uma garota. Passou a noite com ela, na manhã seguinte foi ver uma amiga e juntos fizeram algum rolê, e então a ida ao meu apartamento, onde ele dormiu.

Que ótimo serviço de hotel ofereci, não é mesmo?

Dias depois, apaguei minhas velinhas e o cara bacana do Tinder me levou para jantar; presente de aniversário.

Estava contando essas histórias à minha irmã e, de repente, me dei conta do muito pouco que aceitava como demonstração de afeto desse crush de anos. Em contrapartida, um jantar oferecido como presente se torna algo especial, quando é uma atitude comum de pessoas que se gostam. E aí veio a pergunta:

- Ana, em que momento a gente entende que merece menos que o mínimo e começa a acolher qualquer coisa por um bocadinho de amor?

Eu não esperava uma escavação em busca de respostas. Também não tinha a pretensão de novamente falar sobre corpo. Mas é preciso — sempre! Autoestima é uma conquista que precisa ser exercitada diariamente, muitas vezes por meio do entendimento de nossas dores.

Meu primeiro amor

Me apaixonei pela primeira aos 12 anos. Uma pré-adolescente gorda, que desejava um garoto visto como popular. Assim como muita gente, fui rejeitada pelo meu primeiro amor. Mas vejam, que bom, pude saber o motivo dessa não-correspondência. As pessoas eram enfáticas: “Se você emagrecesse, ele ia gostar de você. Porque você é linda de rosto”.

Nessa época, fiz minha primeira dieta. Foram alguns anos sonhando com esse amor e, entre os altos e baixos da balança, tentando mostrar o meu valor a ele. Em troca, ganhei uma espécie de amizade; o boy me contava sobre suas relações com outras garotas e eu escutava com a esperança de um dia chegar a minha vez.

Uma noite a gente finalmente se beijou. Estávamos em um show do Skank, nos encontramos no meio da multidão e aconteceu. Depois, os amigos dele disseram que ele só ficou comigo porque estava bêbado.

Caras bêbados. Nem sei dizer quantas vezes escutei, na adolescência, que fui beijada por garotos só porque eles estavam bêbados. Às vezes, na própria abordagem do pretendente.

- Só que eu estou bêbado.

A justificava para querer estar comigo e a antecipação de que não iria rolar de novo.

Eu ficava com aqueles que me interessavam mesmo assim. Conquistei, aliás, a façanha de ser uma das mais beijoqueiras da turma. Criei estratégias: eu não poderia gostar de um garoto minimamente popular, pois não teria chance. Então ‘eduquei’ meu coração e passei a me atrair pelos garotos ‘possíveis’.

Morava em uma cidade com pouco mais de 20 mil habitantes. O programa para os adolescentes era a praça e depois o clube, com seus bailes aos sábados. Além dos meus amigos, me tiravam para dançar os caras conhecidos por serem malandros ou por suas relações com álcool e outras drogas. Homens mais velhos, algumas vezes. Meninos que tinham menos grana também.

Tenho algum receio dessas afirmações porque sei que elas entram em julgamentos e envolvem questões sociais. Mas eu sentia isso… que os genros que mamãe não pediria a Deus se aproximavam de mim. A gorda porque ela é mais fácil de pegar.

Essa foi uma parte da história. A outra era correr atrás dos garotos com quem eu encanava. No fundo, sou convencida pra caramba. Já me achava gata, sim, já me achava legal e divertida, sim e, vira e mexe, queria os boys must have! Ralando muito para mostrar meu ‘potencial’ a eles, algumas vezes consegui. Outras não.

Tais construções sobre mim — que não deixam de incluir meu olhar em relação ao outro — se deram entre meus 13 e 17 anos. Fiz MUITOS regimes nesta fase, porém o rótulo que recebi das pessoas nunca me deixou completamente.

Gorda

Outubro de 2005, Porto Seguro, Bahia. Viagem de terceiro colegial, só alegria. Em uma das festas do Tôa Tôa, fui beijada por um menino muito gatinho. Fiquei impressionada. Na volta da viagem, sabe-se lá como o encontrei na Internet. Fui falar com ele toda animada.

- Oi, sabe quem sou?

- Sim, a gorda que eu peguei em Porto Seguro.

Sabe o que eu respondi? Que não! Porque nenhuma adolescente quer ser a gorda que alguém pegou em Porto Seguro. Chorei e excluí a conversa. Não era comigo.

Em 2006, Pedro, o segundo garoto por quem fui apaixonada, voltou a morar na cidade. Sou teimosa e geralmente minhas paixões se demoram. Ele, conheci em 2003, aos 15 anos. Tinha tomado remédios tarja preta com o objetivo de emagrecer para a minha festa de debutante. Por isso, estava magra quando ficamos pela primeira vez. Assim que parei o tratamento com os medicamentos, parte dos quilos reapareceram. E eles foram voltando e voltando à medida que Pedro se afastava de mim.

Sempre achei que esse ganho de peso foi o vilão de nossa relação. Mas não tive coragem de confirmar a teoria com o Pedro, que depois se mudou para Santa Catarina. Eu estava ainda mais gorda quando ele retornou à cidade, em dezembro de 2006. E lembro que fingi que não o conhecia ao reencontrá-lo.

***

19 de junho de 2007. Um dia depois de completar 19 anos, fiz uma cirurgia de redução de estômago. Queria me sentir amada com urgência.

Um namorado para chamar de meu

Cerca de 60 quilos foram embora com a bariátrica. Todos eles em menos de dois anos. Depois veio a abdominoplastia. E o namoro com o João. Conheci meu primeiro namorado por amigos em comum, e começamos a ficar mais ou menos um ano depois do corte que pedi para fazerem em meu estômago. Eu queria namorar sério, apresentar para a família, essas coisas não vividas até então. Mas demorei um bocado para admitir que estava apaixonada por ele.

Assim que entendi o que sentia, não posso dizer que nossa relação foi algo que fluiu. Não mesmo. Persisti muito para que ela acontecesse. Um ano e meio de insistências e apostas. Um acreditar que ele gostava de mim, apesar das mancadas que dava: ficar com outras garotas, só me procurar de madrugada, não assumir o que tínhamos. Dias antes da cirurgia que faria para retirar o excesso de pele da minha barriga, adquirido com o emagrecimento rápido e em grande escala, falei com ele. Pedi, por favor, que só voltasse a me procurar quando soubesse o que queria comigo. Foi quando ousei desejar algo inteiro pela primeira vez.

Na sala pós-cirurgia, acordei tendo alucinações com o João. Tinha medo e o mesmo frio na barriga que percebo agora, ao escrever esse texto.

Quase um mês depois, fui a um bar da cidade com amigas. João estava lá. Não nos falamos, voltei para a minha casa e recebi uma ligação. Era ele, um pouco bêbado, dizendo que queria me ver. Ele foi até a minha casa. Conversamos, choramos. Eu contei que queria namorar e pedi que ele pensasse se sim ou não, mas que não voltasse a ficar comigo sem uma definição. Na semana seguinte, assumimos um namoro.

Nossa história a partir desse momento foi linda. Elementos como respeito, cumplicidade e cuidado passaram a fazer parte dela. Me sentia amada por João e o amei profundamente. Assim, construímos cerca de cinco anos de nossas vidas um ao lado do outro.

Mas havia o mas. Aquele mas que só diz respeito a mim.

Nesse tempo com ele, me formei em Jornalismo, fiz intercâmbio, me mudei para São Paulo… e voltei a engordar.

Uma noite saímos para jantar. Eu morava perto da Avenida Paulista, por isso caminhamos até a pizzaria escolhida, na Alameda Tietê. Não sei por que exatamente, mas na volta o João saiu andando na frente, em um ritmo que não consegui acompanhar. Fomos assim até o apartamento, ele alguns passos à frente e eu ficando para trás.

Tivemos uma briga feia ao chegar em casa. Lembro que expus o quanto me senti humilhada com seu gesto e disse que ele não tinha o direito de me fazer duvidar da mulher que me tornara, mesmo gorda mais uma vez. João questionou se eu sentia mesmo orgulho de mim, pois eu titubeava ao estar com ele em público, em eventos em nossa cidade.

Eu não queria ouvir as pessoas comentando “a Néli, sabe? aquela que fez redução de estômago e voltou a engordar”, e precisei de um tempo para entender que essa questão era mais minha que dele.

Quando isso ocorreu minimamente, após tantos processos e uma leitura de mapa astral, terminei nosso namoro. Foi meio que do nada, eu não tinha nenhuma clareza do que estava encerrando ali, porém sentia que precisava mergulhar fundo numa relação comigo mesma.

Um apetite voraz

Achava de verdade que nunca mais ficaria com alguém. Que nenhum cara iria me desejar gorda. Paguei para ver e solteira na capital descobri o Tinder. Perdi o foco no primeiro match. Conheci Lucas, um cara lindo, inteligente, engraçado, que lê poesia e tem um milhão de gostos em comum comigo. Portanto, claro, minha alma gêmea.

Antes de encontrá-lo pessoalmente mandei mensagens subliminares para ele entender o meu corpo. O corpo de uma mulher gorda. Mas não dizia com todas as letras, pois, na época, essa afirmação era uma afronta a mim mesma.

Bom, minha alma gêmea estava no Tinder e tinha uma namorada fora do aplicativo. Me contou meio assim como quem não quer nada, antes de nos conhecermos ao vivo. Eu, já completamente apaixonada depois de “tantas” mensagens trocadas em duas semanas, quis encontrá-lo mesmo assim.

Tomamos uma cerveja, nos beijamos, transamos. Construí uma ilusão de relação sem rótulos e fiz não sei quantas projeções em cima dele. Não por acaso, também comecei a fazer terapia nesse tempo. Depois de alguns encontros, Lucas terminou comigo “porque percebeu que tanto eu quanto ele estávamos envolvidos demais, e esse não era o plano”.

Chorei feito criança abandonada. Sabia que dependia do olhar dele para me garantir e, se não o tinha mais, provavelmente estava certa. Uma mulher gorda (eu) não poderia ser amada em completude.

Apesar da história torta, Lucas me abriu as portas para ser. A dor que senti com sua partida foi o que me levou às questões mal-resolvidas de minha adolescência e infância nas sessões de terapia.

Em um sábado qualquer, ele ligou contando que terminou o namoro. Como não sei me fazer de difícil e seguia apaixonada, nos encontramos no dia seguinte. Novamente uma relação sem rótulos. Dessa vez, com ele mais ali, mais presente.

E eu? Eu comecei a achar que o Lucas se atraía por mulheres gordas porque no fundo era inseguro. Elas (sempre eu!), ‘presas’ fáceis para ele. Meus bloqueios me sussurravam ser impossível alguém como ele apaixonado por mim. Então, passei a me inferiorizar e a engrandecê-lo, cada dia mais insegura e cada vez mais apaixonada. Até que ele conheceu uma menina em um ponto de ônibus, algo assim, e ficou com ela. Foi quando flertei com a loucura. Não conseguia identificar a parte real e saudável do que vivi com ele, e o que eram minhas projeções.

Me dei um mês para melhorar e, meu bem, estava lá no Tinder outra vez! Preciso contar que me apaixonei pelo segundo cara que conheci pelo aplicativo? Não, né? E ele é esse crush de pelo menos três anos, para quem ofereci o serviço de hotel?

Continuei minha relação com Lucas, só que com meu segundo match. Teve mais confusão e choro, mas também riso e desejo. Depois de um tempo, soube distinguir esses amores, o que não evitou a repetição: o Vitor encontrou outra pessoa e escolheu ficar com ela. Um novo abismo (também conhecido como fundo do poço), que foi trampolim definitivo para meu mergulho sem fim.

Tess Holliday

Começou assim: uau, não estou mais me sentindo um lixo, acho que posso voltar a ter encontros.

Para entender o restante da história, dados spoilers: eu e Vitor nos conhecemos em abril de 2015, tentamos namorar em dezembro do mesmo ano, terminamos em uma semana, voltamos a sair em janeiro de 2016, ele começou a namorar outra menina em março do mesmo ano. [tempo passando] voltamos a sair em março de 2017, ficamos até setembro do mesmo ano, rompemos. Como sabem, ainda ofereci o bônus track serviço de hotel em junho agora.

Uma vez, com apenas umas três saídas do histórico, ele perguntou se eu conhecia a modelo Tess Holliday. Dei um Google para checar e encontrei uma mulher lindíssima. E gorda. Respondi a mensagem:

- Não a conheço, deveria?

E ele:

- Todo mundo deveria saber quem é Tess Holliday.

Contei esse lance na terapia e minha psicóloga me convidou a entender por que a pergunta dele me incomodou. Fugi do assunto, mas fui posar para o Nós, Madalenas, projeto idealizado pela fotógrafa Maria Ribeiro com o objetivo de questionar os padrões de beleza. Cada uma das participantes da série — que virou livro e exposição — teve de escolher uma palavra que representasse a sua relação com o movimento feminista e com sua própria narrativa. A minha foi plenitude. Esse foi meu primeiro ensaio com a minha totalidade.

**

Em 2016, o Vi conheceu a Paula e escolheu ficar com ela. We can be herous just for one day. Minha música fossa, que veio com o filme As Vantagens de Ser Invisível. Aquela história de ‘aceitamos o amor que achamos merecer’. Não entendia a repetição em que me via. Plenitude era a palavra, eu estava me amando, por que isso?

Meu esboço de reação foi chamá-lo no WhatsApp para contar o que significam as cicatrizes que tenho em minha barriga. Ele havia perguntado algumas vezes e eu não tinha respondido. Como posso contar que fiz uma redução de estômago se estou gorda? Seria uma vergonha. Ao assumir essa ‘coragem’, dessa vez também quis saber se por acaso ele ficou com a Paula porque ela é magra. Acho que ele disse que eu estava viajando, mas está aí um episódio que não lembro exatamente.

Salto para 2017, quando voltamos a ficar. Estávamos juntos quando o Gorda, ensaio pessoal elaborado como trabalho de conclusão de curso da pós-graduação que fiz em Jornalismo Literário, escrito em junho do ano anterior, foi publicado. O primeiro sobre minha relação com meu corpo.

Também estávamos juntos quando viajei de férias com uma grande amiga para Alter do Chão, o caribe amazônico ou meu paraíso na Terra, lugar que me proporcionou uma conexão intensa comigo mesma.

Ao retornar, o Vi não topou o relacionamento que eu quis ter ao seu lado. Segui o baile e tentei esquecê-lo com muita vontade. Só que as coisas não funcionam exatamente assim. Então ele me contou que passou a sair fixo com outra garota. Escrevi:

E assim o amor dá as caras em sua forma mais bonita: de amor-próprio, para relações saudáveis. Busquei e busco muito esse tal de amor-próprio. Nunca sei direito se cheguei lá, mas pelo mínimo de gratidão por ser quem sou, me retiro dessa repetição de nossa história para não me machucar.

Minha redenção

Ano de 2018: uma escavação ao meu abissal, onde encontrei memórias que ajudaram a compreender alguns dos meus mecanismos de defesa e minhas atuações e sabotagens no campo dos sentimentos. Foi difícil e demorado. Está sendo.

Me afirmar gorda foi a escolha mais libertadora que fiz. Mas de alguma forma, a Néli adolescente sempre está aqui, sorrindo para mim. Às vezes, sem que eu perceba, ela me convence com sua teimosia e, quando vejo, já estou me comparando com outras mulheres; me diminuindo por ser quem sou; apegada à rejeição.

Por isso esse texto não é sobre corpo. Tampouco esse texto é sobre o meu primeiro amor, namorado, alma gêmea, crush ou sobre caras legais que levam meninas para jantar em seus aniversários.

Isso aqui é sobre, aos 30 anos, ser capaz de costurar minhas vivências para me tornar aquela tal colcha de retalhos… quentinha, confortável, inteira.

É sobre um estar no mundo mais leve, por saber que em meu peito bate um coração que segue com seu apetite voraz, mas que cada vez mais só quer saber de lambuzar os beiços, ainda que eventualmente possa se atrapalhar com sua fome.

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Néliane Catarina Simioni
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Written by Néliane Catarina Simioni

Confia no aviso que recebeu em sonho: mãos que produzem também curam. Por isso, escreve.

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