O real peso da história: quarentena e gordofobia

Néliane Catarina Simioni
9 min readSep 10, 2020

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Meme que circulou nas redes sociais. Reprodução do Instagram.

A quarentena já era uma realidade à maioria das pessoas que podiam ficar em suas casas para evitar a propagação da Covid-19 quando eu e esse meme nos descobrimos.

Ele não foi o primeiro meme com alusão a engordar na quarentena que vi circular nas redes sociais desde que a pandemia começou. O debate acerca da gordofobia estava aquecendo no Instagram e o vídeo “Sobre engordar na quarentena”, da influenciadora digital e ativista body positive Alexandra Gurgel (@alexandrismos), havia sido publicado e contava com milhares de visualizações.

Mas lembro do momento específico em que me deparei com ele. Navegava pelos stories matando um tempo qualquer e a imagem me chamou a atenção. Parei, olhei, li a frase “primeiro encontro de amigas depois da quarentena” e fiquei incomodada a ponto de deixar de seguir a pessoa que o postou. Não entendi meu desconforto, e apesar de achar o meme gordofóbico de imediato, não tinha argumentos para explicar o porquê.

Em busca de respostas, decidi seguir as pistas de sua textualidade para entendê-lo (e entender-me). Faço mestrado em Divulgação Científica e Cultural, na Unicamp, e estudo a Análise de Discurso. A metodologia compreende que o discurso não é transparente; ele tem matéria.

A partir de suas premissas procurei refletir sobre os efeitos movimentados no meme em questão, com o objetivo de localizar os sentidos não-ditos a princípio na imagem, mas que estão lá, dessa vez significados pela pandemia.

É no discurso que o homem produz a realidade com a qual está em relação. Esta é uma das bases da Análise do Discurso: a questão não é o que um texto significa (seu conteúdo), mas sim como o discurso é produzido (sua forma). Eni Orlandi explica melhor essa relação: “Resta dizer que o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo. É pelo fato mesmo de dizer que o sujeito se diz, se constitui” (2006, p. 17).

A pandemia causada pelo coronavírus reforçou que a tecnologia faz parte dos modos de existência do sujeito e, portanto, da produção de seus afetos (DIAS, 2018). Cada vez mais, computadores, celulares e diversas plataformas digitais estão presentes em todas as dimensões de nossas vidas. Não falamos mais da Internet, nós a vivemos — e associamos os perfis de nossas redes sociais a extensões de quem somos.

Foi nesse cenário que encontrei o meme, como já disse. A pauta sobre engordar na quarentena aparecia na mídia de duas formas principais: como controlar a sua alimentação e se exercitar dentro de casa para evitar o ganho de peso versus por que você não deveria se importar se engordar durante o período.

Sigo, no Instagram, uma série de influenciadoras digitais e produtoras de conteúdo dos movimentos body positive e do ativismo gordo. Procuro acompanhá-las e ouvi-las. Os memes que famosos, humoristas, o grupo da família no WhatsApp e até suas amigas estão compartilhando sobre o antes e depois da quarentena são gordofóbicos porque ridicularizam o corpo gordo e induzem a crença de que pessoas irão engordar pelo fato de estarem em suas casas, comendo o tempo todo e sem fazer nada, assim como os gordos fazem (só que não). Essa foi a justificativa que mais vi para explicar a gordofobia, nesse e em outros memes. Sempre junto aos lembretes: gordofobia não é piada e tudo bem se engordar na quarentena!

Concordo com isso, então, ganhar peso não deveria ser um problema para mim, certo? Só que quando vejo um meme como esse— compartilhado por uma pessoa magra que conheço — entro em pânico com a possibilidade de o meu corpo aumentar.

Já sou gorda e, portanto, poderia ser uma das mulheres do meme. Sem a frase que relacionaram à imagem, eu olharia para elas de forma contemplativa. São quatro amigas, bem-arrumadas, belas e, veja só, felizes em um retrato feito provavelmente em outra época. Mas a menção colocada para produzir o efeito de piada no meme sequestra a identidade de cada uma delas — e a minha. Não consegui descobrir o nome do autor da foto, não achei em que contexto ela foi tirada. A encontrei na internet apenas como um meme da quarentena, reproduzido em diversos idiomas, inclusive.

Inquieta, lancei uma enquete em meus stories do Instagram: para você, esse conteúdo é gordofóbico? Se sim, você sabe dizer por qual motivo? 72 pessoas responderam que sim, ele é gordofóbico, e 14 votaram no não. Das que votaram que ele é gordofóbico, 23 disseram não saber responder o motivo da acusação.

Minha irmã me disse: “olha, não sei se esse meme é gorfóbico. Se fosse você compartilhando, eu não acharia. Mas agora estou pensando. Se fosse uma pessoa que não gosto, ou uma pessoa magra, eu acharia sim”.

Eu também estava nesse entremeio. A gordofobia seria uma questão de ponto de vista? Sabia que não poderia ser. Caracterizada como preconceito, intolerância e aversão a pessoas gordas, a gordofobia muitas vezes desemboca em exclusão social, existe e está enraizada em nossa cultura.

Embora gorda desde criança, enquanto acompanhava as discussões sobre engordar na quarentena e tentava compreender o meme, me sentia de fora. Onde estão as pessoas que ainda não chegaram lá? Há tempos que para mim gorda não é uma palavra que indica xingamento, há tempos sei que ser magra não é necessariamente estar saudável, assim como ser gorda não significa automaticamente estar doente. Há tempos tento estar em paz com o meu corpo e procuro cuidar dele com mais carinho. Há tempos que falo sobre ser gorda na terapia, escrevo sobre isso, investigo as construções sociais sobre a beleza e seus padrões e, juro, há bem pouquinho tempo consegui usar biquíni sem medo.

Hoje, vejo beleza nos corpos de mulheres gordas. E peguei um tanto dessa admiração para mim mesma. Minha relação com o espelho está em uma fase saudável. Mas ainda assim tenho medo de engordar na quarentena. E vou te contar o motivo junto a uma breve análise do meme.

Mulheres e carros são os elementos principais dessa fotografia que foi transformada em meme. Essa relação carrega significados.

A historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna se dedica há algumas décadas a estudar as relações entre corpo e a cultura contemporânea. Ela conta em seu livro “corpos de passagem — ensaios sobre a subjetividade contemporânea” que, em 1908, Sílvio Álvares Penteado tornou-se o “homem mais rápido do Brasil”. Ele foi o vencedor do Circuito de Itapecerica, a primeira corrida de automóveis e motocicletas da América do Sul, com a média horária de 50 quilômetros em seu Fiat.

A moda daqueles antigos anos celebrava o feito de correr sobre quatro rodas em competições esportivas. “Não foi apenas a paisagem da cidade que o automóvel conquistou. Ele ganhou o espaço rural e a atenção de seus habitantes. As competições automobilísticas também funcionaram como uma espécie de publicidade ao estupendo híbrido homem-máquina em alta velocidade” (SANT’ANNA, 2001, p. 41–42). O estereótipo passou a ser assíduo na publicidade e, neste espaço, a imagem do automóvel casou-se rapidamente com a da mulher: “dois corpos sedutores e promissores, cujas fotografias se tornam banais em capas de revistas de várias partes do mundo” (p. 42).

Sant’Anna explica que o sucesso das formas aerodinâmicas demonstrava que dominar o movimento implicava em acelerá-lo e generalizá-lo para liberá-lo da tração animal e dos trilhos. “Economizar ao máximo as formas sobre um mínimo de volume transformava-se na linha dominante do desenho de automóveis, eletrodomésticos e móveis, uma tendência que se mostrava também em relação à aparência dos moradores das grandes cidades. Corpos longilíneos, capazes de mostrar agilidade e flexibilidade, especialmente no trabalho, pareciam fornecer um atestado de decência e elegância incontestável” (SANT’ANNA, 2001, p. 43).

A pedida pela velocidade criou lentidões e todo o peso material, inclusive o peso do corpo, foi percebido como um obstáculo a ser ultrapassado. A história mostra que desse momento em diante a sociedade passou a nutrir uma franca aversão pelos gordos. Nem sempre foi assim.

“Foram inúmeras as sociedades que acolheram com alegria a presença dos gordos e desconfiaram da magreza (…) Entretanto, no decorrer do século 20, os gordos precisaram fazer um esforço para emagrecer que lhes pareceu bem mais pesado do que o seu próprio peso” (SANT’ANNA, 2001, p. 20–21).

Não posso dizer que essa citação fala por todos os gordos, mas ela definitivamente fala por mim. Cresci dividida entre não querer ser gorda e desejar apenas ser gorda em paz. Sinto que nunca pude apenas ser, pois, meu corpo chega antes que eu. E é esperado que eu faça algo em relação a ele, melhor ainda se puder diminuí-lo, controlá-lo.

Desde o século 20 pessoas gordas têm de caber em espaços e equipamentos que são os primeiros a excluir a presença de seus corpos: cadeiras e poltronas de escolas, cinemas, teatros e aviões, por exemplo. Atualmente há também as catracas dos ônibus e os bancos do transporte público.

Uma curiosidade, uma vez que estou construindo esta reflexão usando o carro como ponto de partida, é que o cinema drive-in foi criado na década de 1930 por Richard M. Hollingshead Jr., cuja mãe era gorda e não cabia nas poltronas das salas de cinema. Daí a ideia de ver filmes confortavelmente dentro dos carros[1].

Não é surreal pensar que hoje, quase cem anos depois da invenção, o modelo de negócio voltou a brilhar com a pandemia e as questões de acessibilidade do corpo gordo, que já existiam em 1930, pouco avançaram?

Também no século passado a experiência da alimentação foi transformada em espetáculo midiático e em um grande produtor de identidades. Saber o quanto pesa se tornou uma experiência necessária, especialmente para as mulheres. Nesse contexto, as revistas lançaram a cultura de mostrar o “antes e depois” dos corpos como resultado das mais mirabolantes dietas (prática incorporada pelas musas fitness de hoje em seus perfis no Instagram). Essa contraposição entre gorda e magra tem materialidade. Ela costura gorda, peso e fracasso em oposição a magra, leveza e sucesso.

Dessa forma e progressivamente fora construído o estigma sobre o corpo gordo e especialmente em relação à mulher gorda. Os sentidos movimentados no meme manifestam esse símbolo — gorda — como um marcador de diferença social e não dá possibilidade para essas mulheres serem além do estigma.

Considerando, então, o meme em sentido estrito (suas condições de produção e seu contexto imediato), há o conteúdo que viralizou nas redes sociais assim que o isolamento social foi estabelecido como medida de prevenção contra o coronavírus, querendo fazer graça com a ideia de que, por ficar em casa, as pessoas irão comer e sair gordas do período da quarentena.

Em seu sentido amplo, que implica pensar a historicidade dos elementos do meme e entender quando, como e por que ser gorda passou a ser considerado algo negativo, é revelado que nossa sociedade ainda não consente a gorda livre do estigma.

O meme a devolve para esse lugar, como se dissesse: você até pode se aceitar sendo gorda, mas saiba que será motivo de chacota porque, afinal, quem quer ser a gorda? Há essa “voz sem nome” na origem dos discursos que ele carrega (na Análise de Discurso ela recebe o nome de memória discursiva ou interdiscurso).

Acredito ser obrigatório fazer a pergunta: quem dá os sentidos? E o que torna a gordofobia, de fato, gordofobia?

Mesmo que tenha estado magra em alguns momentos de minha vida, eu sou gorda. E vale ressaltar que não conheço uma única pessoa gorda que não tenha tentado emagrecer pelo menos uma vez em sua trajetória. É um trabalho árduo ir contra a norma e buscar naturalizar nossos corpos.

Quem carrega o estigma da mulher gorda e busca aceitação tem de desconstruir todo esse imaginário e aprender que o corpo é fruto de processos histórico-sociais, assim como os padrões de beleza; assim como a língua e os elementos constituintes de um sujeito. Aliás, o sujeito é um lugar de significação historicamente constituído.

Nos entender como “normais” e desejar esse tratamento da sociedade é apenas o que queremos. Então chega a pandemia, a quarentena e corpos como o meu passam a ser estampados em memes. Vamos rir porque, na verdade, temos medo de ser a gorda. Esse é o interdito que está na ação de seu compartilhamento, em sua circulação.

Entendida a mensagem, não me surpreende o meu (e o seu) medo de engordar na quarentena (e antes dela). Mas há esse ensaio, uma tentativa de escapar dos discursos que aprisionam e um passo adiante em busca de liberdade para amar meu corpo gorda.

[1] Informação retirada do livro Gordos, Magros e Obesos — Uma história de peso no Brasil, de Denise Sant’Anna (2016).

REFERÊNCIAS

DIAS, Cristiane. Análise do discurso digital: sujeito, espaço, memória e arquivo. Campinas: Pontes, 2018.

ORLANDI, Eni P. A análise de discurso é possível? In. Línguas e Instrumentos Linguísticos — ed. 44. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 2019.

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios & procedimentos. Campinas: Pontes, 2009.

ORLANDI, Eni P. Conhecimento e informação na vida social contemporânea. Eu, tu, Ele: discurso e real da história. Campinas: Pontes, 2017.

ORLANDI, Eni. Entremeio e discurso. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1998.

ORLANDI, Eni P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996.

ORLANDI, Eni P. Observações sobre análise de discurso. Terra à vista. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.

PAVEAU, Marie-Anne. Linguem e moral. Trad. Ivone Benedetti. Campinas: Editora da Unicamp, 2015.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Tradução Eni Orlandi — 2. ed. — Campinas: Editora da Unicamp, 1995.

SANT’ANNA, Denise Bernuzi de. Corpos de Passagem — Ensaios sobre a subjetividade contemporânea. São Paulo: Estação Liberdade, 2001.

SANT’ANNA, Denise Bernuzi de. Gordos, magros e obesos: uma história de peso no Brasil. São Paulo: Estação Liberdade, 2016.

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Confia no aviso que recebeu em sonho: mãos que produzem também curam. Por isso, escreve.

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