“O que eu sei sobre o amor, eu inventei”
Panneaux com frase de Rico Dalasam, da música ‘Guia de um Amor Cego’ – EP Fim das Tentativas (2022).
Um textão para encerrar 2022. Ontem soube que uma das participantes da segunda temporada do ‘casamento às cegas’ versão BR é uma mulher gorda. E que ela foi rejeitada pelo cara que estava conversando após o encontro sem as vendas. Seu corpo e sua imagem parecem ser um problema para ele. Bem, o que aconteceu nas telas rola o tempo todo aqui fora, e isso não é novidade para ninguém.
Antes de saber dessa história, também ontem estava pensando nos muitos pequenos episódios que vivi ao longo da vida, que me constituíram e até hoje movimentam algo em mim que me impulsiona à rejeição. Pensei em fazer uma lista. Comecei a fazê-la mentalmente.
Retomo-a agora:
- Na foto da turma da minha formatura no pré III, o coleguinha ao meu lado está fazendo uma careta. Nessa época, alguém me disse que o motivo da cara feia é porque ele foi obrigado a ficar do lado da amiguinha gorda para o retrato. Hoje me pergunto se alguém realmente teve coragem de dizer isso a uma criança, mas acho que sim, porque essa memória me acompanha viva.
- Aos sete anos, escrevi no meu diário que o meu desejo para o próximo ano era emagrecer para deixar meus pais felizes.
- Para a primeira comunhão, com nove ou dez anos, foi quando fiz minha primeira dieta mais severa. Precisava emagrecer para usar branco. Também lembro que consegui perder peso – e o quanto as pessoas ao meu redor me consideraram vitoriosa por isso.
- Me apaixonei com doze ou treze anos pela primeira vez. Ele era três anos mais velho e popular no clube que frequentávamos. Corri atrás, ele ficou meu amigo e passou a me contar suas histórias com outras garotas. Queria ficar com todas as minhas amigas, mas eu não tinha chance. Escutava como conselho: “se você emagrecer, ele fica com você”.
- Nessa mesma época, usávamos mIRC. Todo mundo sabia que eu gostava dele. Na sala de bate-papo da cidade, um de seus amigos escreveu, para todo mundo ler, que era melhor ele não ficar comigo, não, pois eu atacaria a geladeira de sua casa. Tinha 14 anos.
- Aos 15, tomei toda a ordem de remédios tarja preta para emagrecer. Consegui, não sem os efeitos colaterais que carrego até hoje pelo uso dessas substâncias.
- Com 16 voltei a ganhar os quilos que tinham ido embora. Acho que foi neste período que percebi que os caras que chegavam em mim no clube não deixavam de afirmar em alto e bom som que estavam bêbados.
- Aliás, nesse ano finalmente pude dar um beijo no meu primeiro amor. Ele estava bêbado.
- No terceiro colegial fui a uma festa à fantasia vestida de salva-vidas. Me disseram: “salva-vidas?! só se for a boia”.
- Tudo ao meu redor, na família, no colégio, na igreja, na praça, no clube, na TV, me lembrava que eu precisava emagrecer. Eu não podia ser a gorda. Se assim fosse, pagaria o preço de não ser amada, que para mim equivalia a não ser feliz.
- Com 19 anos fiz uma cirurgia bariátrica. Dois anos depois, uma abdominoplastia. Em pouquíssimo tempo após as cirurgias comecei a namorar. Foi o primeiro namorado de verdade. Nunca deixei de me perguntar se ele teria me assumido se eu não estivesse magra.
Essa lista poderia ter – e tem – 365 tópicos, mas corta para os dias de hoje. Tenho 34 anos. Destes, os últimos dez morando em São Paulo. Sair da minha cidade natal foi crucial para muitas descobertas… a principal delas é que eu tenho o direito de ser uma mulher gorda.
Com a maturidade, o tempo de terapia, o envolvimento com a feminismo e o entendimento da gordofobia, passei a gostar da minha imagem. E a AMAR o meu corpo. Porque esse corpão aqui é o que tenho, ele sou eu. Não existe “você não é apenas o seu corpo” (aliás, essa frase é gordofóbica). Nós somos os nossos corpos. Ninguém está a salvo disso.
As experiências que vivi junto ao meu corpo não foram só dolorosas. Também dançamos, rimos, conhecemos lugares e pessoas incríveis, pensamos, criamos, ralamos muito, trocamos e recebemos afeto, gozamos… tantas lindas formas de afeto vivenciamos! Fomos/somos felizes a maior parte do tempo. Por isso aprendi a amar.
Ainda assim, não estou blindada. Algumas situações são gatilho… Por exemplo, esse ano, fiquei três meses fora no Brasil e pude experimentar o meu corpo em novos espaços e culturas. Na Europa, estava em uma balada e um cara gato chegou em mim. Era francês e personal trainer. Todo gostoso. Começamos a conversar e nos beijamos. Em dado momento perguntei por qual motivo se interessou em mim, em um tom de paquera, já que era o nosso contexto. Ele respondeu que mulheres gordas transam melhor. Quis chorar, mas não foi a primeira vez que ouvi isso de um cara. Um dia um amigo me explicou o “óbvio motivo” que define porquê meninas gordas fazem sexo oral melhor (segundo ouvi, lei da oferta e da demanda).
Não chorei. Dei um passa fora no gostosão e continuei na balada. Eu e meu corpo dançamos. Aprendemos a seguir o baile.
Onde quero chegar com o tudo isso? Sei lá, colocar para fora. Me vi no papel da mulher do casamento às cegas, estive nele tantas vezes.
Mas minha meta pra 2023 é defender minha dissertação no mestrado. Pesquiso sobre gordofobia, sua relação com a meritocracia, o liberalismo que molda nossas subjetividades, o corpo e a cultura, a performatividade das redes sociais. Tem mais coisa. Tá bonito, tenho gostado do percurso. Meu desejo dois é que as pessoas possam acessar o que venho estruturando e que vem sendo construído por muita gente no campo dos estudos das corporalidades gordas (tem muita pesquisa foda sobre). Um pensamento que não vê na pessoa gorda morbidez.
Enfim, entendo que estou contando tudo isso para não me lançar às rejeições. Rico Dalasam canta:
“O que sei sobre o amor, eu inventei. Inventei um jeito para me amar. E quando alguém se sente amado por mim, eu penso que deu certo o que eu precisei inventar.”
Eu também inventei um mundo amoroso para além das dores. Ele é grande.